sketches de fibrja (Seoul, Coreia do Sul, setembro 2019)
Sabe-se agora, finalmente, que o reflexo das coisas contém o rosto, as vestes e as ideias que vestimos que fazem de nós, não apenas um bando de corpos em migração casa-trabalho, mas um bando de corpos com identidade que cantam a mesma música sem se aperceberem das mudanças harmónicas em que emergem juntos.
Antes de avançar recorde-se o antepassado do velho que ali vai, caixa de cartão na mão a atravessar a rua tão cuidadosamente, cuidando que pisa os paralelos da estrada num padrão diagonal que só ele vê, reconstruindo talvez um qualquer jogo dos netos ou do seu próprio tempo como neto. O antepassado do velho olhou o seu reflexo na água que não vinha engarrafada e com dificuldade percebeu que eram os seus olhos que o observavam, incorpóreos, espelhando as suas expressões. Acreditou ser muito feio pois momentos antes uma corajosa rã saltou para a mesma água, formando um epicentro de ondas que desfiguravam as bochechas, a testa, os lábios e o nariz, ai o nariz, ai!, do antepassado do velho!
O velho quase corre agora, apercebendo-se que uma jovem de boné numa frágil mota lhe dá o tempo todo que precisar para atravessar a rua. Ainda assim, por cortesia, ele corre, quase caindo, a caixa de cartão cambaleando com o velho.
O neto do velho não sabe disto, está já no emprego, que é do outro lado da rua, o reflexo da janela do escritório revela um velho fosco no chão e uma caixa de cartão a seu lado. A multidão aproxima-se para julgar o velho e, por cortesia, ajudá-lo a cambalear para fora da estrada, no passeio, que é o sítio desenhado para se cambalear. As passadeiras e as ruas estreitas sem passeio, como se sabe, são excepções à regra.
O neto do velho ouve um rumor lá de cima, da sua janela: um velho, uma caixa de cartão, e o conteúdo da caixa que simplesmente aproveitara o momento para cambalear pelo prédio adentro, avançando a porta metálica como o fazem as pessoas: sem verem o seu reflexo nas coisas por que todos os dias passam a cantar.
Ao fim de alguns minutos, o neto do velho contorceu o rosto, franziu o pensamento e procurou escutar novos episódios deste rumor tão estranho, mas a curiosidade foi-lhe devolvida em silêncio.
Um baq! na porta de vidro martelado do seu escritório.
Já não havia neto, nem velho. Haviam coisas e o nosso reflexo nas coisas. Corpos quotidianamente corpóreos agora feitos coisa.
Recorde-se o antepassado do velho: jurou que nunca mais olharia para o seu reflexo. A rã, essa mesma corajosa rã, sabe-se agora, teve girinos e esses girinos tiveram girinos até que todos os reflexos preencheram o espaço das coisas.